Numa das primeiras mensagens do seu pontificado, o Papa Leão XIV se dirigiu aos fiéis presentes ao Jubileu das Igrejas Orientais, no último 14 de maio, dizendo-lhes:
A Igreja precisa de vós! Como é grande a contribuição que o Oriente cristão nos pode oferecer hoje! Quanta necessidade temos de recuperar o sentido do mistério, tão vivo nas vossas liturgias, que abrangem a pessoa humana na sua totalidade, cantam a beleza da salvação e suscitam o enlevo pela grandeza divina que abraça a pequenez humana! E como é importante redescobrir, também no Ocidente cristão, o sentido do primado de Deus, o valor da mistagogia, da intercessão incessante, da penitência, do jejum, do pranto pelos pecados, próprios e de toda a humanidade (penthos), tão típicos das espiritualidades orientais!
O elogio dessa espiritualidade teria de se fazer acompanhar do temor pelo destino de igrejas especialmente perseguidas: “penso na variedade das vossas proveniências, na história gloriosa e nos amargos sofrimentos que muitas das vossas comunidades padeceram ou padecem”, “pois nos nossos dias tantos irmãos e irmãs orientais, entre os quais muitos de vós, obrigados a fugir dos seus territórios de origem por causa da guerra e das perseguições, da instabilidade e da pobreza, correm o risco, chegando ao Ocidente, de perder não só a pátria, mas também a identidade religiosa.” Leão XIV louva então “aos cristãos – orientais e latinos – que, sobretudo no Oriente Médio, perseveram e resistem nas suas terras, mais fortes do que a tentação de as abandonar. Aos cristãos deve ser dada a oportunidade, não apenas palavras, de permanecer nas suas terras com todos os direitos necessários para uma existência segura. Por favor, que se lute por isto!”
As palavras do sumo pontífice cobram um olhar especial não só para as desgraças decorrentes da perseguição de muçulmanos a cristãos, como também para os fatores ocidentais que a fomentam. Da mesma forma que hoje os cristãos de Jerusalém, Cisjordânia e Gaza são sistematicamente premidos (por assédio, segregação e ação militar direta) a desistirem das terras milenares de suas igrejas e entregá-las a autoridades e empresários israelenses, assim também as ações militares dos Estados Unidos no Iraque após o 11 de setembro deflagraram ondas sazonais de violência contras cristãos que deixaram de gozar da proteção tanto do governo corrupto e autoritário de Saddam Hussein, que pelo menos contia os sectarismos anticristãos sob um regime laico, quanto dos americanos, que em grande parte se retirariam e deixariam o governo a cargo de autoridades que tomavam os cristãos, na melhor das hipóteses, como cidadãos de segunda categoria. Coisa similar aconteceria na Síria após a queda do regime de Assad, e com intensidade crescente, a chegar aos massacres de cristãos nos últimos meses sob o olhar despreocupado de um terrorista muçulmano que tomou o poder e hoje governa grande parte do país com a benção dos Estados Unidos.
Um episódio de grande trauma foi o martírio de cerca de 70 cristãos na Catedral Sayidat al-Nejat [Nossa Senhora do Perpétuo Socorro], em Bagdá, em 2010. Esta é uma das mais tradicionais igrejas do país e integra a Igreja Católica Siríaca. É muito frequentada por católicos caldeus, aqueles que no século XVI abandonaram sua posição cismática e voltaram à comunhão com o bispo de Roma, mantendo seus ritos antiquíssimos, em siríaco e aramaico. Essa tragédia e essa espiritualidade caldeia estão no centro do romance Ave Maria (2012), do iraquiano Sinan Antoon, livro ganhador do Prêmio Internacional de Ficção Árabe em 2013 e lançado no Brasil em 2024.
O romance se estrutura entre dois polos temporais, próprios a dois personagens (cujas vozes ouviremos em primeira pessoa em determinados capítulos): o Iraque dos anos 1950 e 1960, com o assassinato da família real e a ascensão dos republicanos, época da qual o já velho Yussef nos trará suas memórias agridoces, mas sempre otimistas, em especial de sua falecida irmã Hinna, uma santa, que deixou de ser freira para dedicar-se à criação dos irmãos; e o Iraque dos 1990 a 2010, com o recrudescimento da perseguição a cristãos, da qual padeceria a família de Maha, sobrinha de Yussef, ela que sentiria no corpo as marcas da violência. A distância entre sobrinha e tio, em cuja casa ela mora com o marido, é aquela entre o desespero de quem só conheceu o convite ao martírio e quem conheceu épocas melhores. Os iraquianos, em Ave Maria, sobrevivem de nostalgia, cada um a exercendo a seu modo, por exemplo numa comunidade do Facebook (trad. Jemima Alves):
Os comentários dos membros abaixo das fotos novas postadas no mural do grupo me faziam lembrar do discurso de Yussef sobre o passado e as lamentações sobre o presente. O mais estranho é que o passado não tem começo nem fim. Há entre eles os que consideram o fim dos anos dourados a chegada dos baathistas, em 1903, e o assassinato de Abdul Karim Qassim. Há outros que veem na ascensão de Saddam, em 1979, o início do fim. Há quem estenda os tempos de alegria até 1991. Para outros, esse período se encerra em 2003. A maioria deles sente saudades da monarquia, partilha fotos da família real e considera a revolta militar e a selvageria que mataram a família real o princípio do mal.
Um elemento do passado ainda persiste e independe de qualquer nostalgia, ainda que agora de forma mal cuidada: a tamareira, esta planta quase sagrada na tradição semítica. No Iraque, tamareira é coisa séria, é questão de administração pública, e foi justamente na Autoridade Iraquiana das Tamareiras que transcorreu a vida profissional de Yussef, um burocrata que, encarregado da tradução de documentos do inglês para o árabe, tornou-se afinal um perito nessa palmeira. Para ele, os tempos mudavam conforme mudava o destino das tamareiras. Ouve de um amigo: “até as tamareiras são classificadas agora como sunitas ou xiitas”. Yussef, católico, acredita numa história presente em evangelho apócrifo e aproveitada pelo Corão na surata 19: “E as dores do parto levaram-na a se abrigar no tronco da tamareira. Ela disse: Quem dera eu tivesse morrido e fosse totalmente esquecida. Então, abaixo dela, uma voz chamou: Por que te afliges, não fez teu Senhor correr sob ti um regato em tua direção, e do tronco da tamareira cair sobre ti um fruto maduro?” A imagem da tamareira irá se imiscuir em toda a sua fé: “Via o Messias como uma árvore sagrada que nunca morre, mesmo se arrancada pelas tempestades ou carregada pelas enchentes. A árvore voltaria à vida na primavera”.
Os versos de poetas árabes clássicos que ouvia de um amigo, entre um copo e outro de arak (destilado alcoólico), acrescentam cor local à sua vida religiosa, limitada, é verdade, e displicente, porém sincera, e sempre tingida de respeito pela religião dos amigos muçulmanos, como aquele que, quando da morte da irmã com vocação de freira, “Sentara-se na primeira fila da igreja e recitara a Fatiha duas vezes pela alma de Hinna”.
A sobrinha Maha, com quem se desentende logo na primeira página do romance (o que abrirá o arco de busca mútua de conciliação que estrutura toda a narrativa), é uma cristã mais dedicada. No ponto alto do livro, o capítulo “Mater Dolorosa”, o narrador de Sinan Antoon assume linguagem menos anódina e contida em metáforas, própria à narrativa de Yussef, para agora entregar-se a figuras de linguagem de toda ordem e imagens que buscam fixar uma dor: a de uma mãe que perde o filho ainda em seu ventre. “A morte atravessou meu corpo, procurando meu filho para enforcá-lo em meu ventre. (...) Quando chegamos ao hospital, em vez de dois corações, havia apenas um batendo dentro de mim. Por que Bachar foi arrancado de meu ventre antes que pudesse amadurecer? (...) Foi do ventre para o túmulo sem passar pelo berço”.
A devoção de Maha pela Virgem Maria, ela que também teve de assistir à morte do Filho, chega a uma intensidade que leva seu marido, Luay, a preocupar-se com uma espécie de luto perpétuo. O sentimento dela é este: “Todos os anos o Filho de Deus ressurge dos mortos. O filho dos homens, meu filho, foi tragado pela morte antes mesmo de nascer, e de lá nunca ressuscitará. O ventre feito túmulo, o corpo como sepulcro. Sem me mexer, eu o visito”. Como numa canção da intérprete libanesa Farouz, ela busca na Virgem piedade para si e para o seu país: “A mãe de Jesus chorou e com ela quem a via / Piedade à nação que matou seu pastor”.
Tio e sobrinha experimentariam, de formas diversas e em momentos vários, o risco da morte violenta ou do exílio – conforme o atentado à Catedral Sayidat al-Nejat deixaria claro. Ambos, contudo, resistem, o que faz lembrar as palavras do Papa Leão XIV mencionadas mais acima. Diz Yussef no aceso da discussão com a sobrinha: “Este país é de todo mundo. É nosso e de nossos antepassados. A história está aí para provar… desde os tempos de Daqnawus [Décio, imperador romano de 249 a 251]. Desde os caldeus, os abássidas e os otomanos até a fundação do Estado do Iraque. Os museus são testemunhas. Sempre estivemos aqui”.
Tendo discordado do tio naquele momento, Maha três dias depois diria palavras em parte idênticas, como quem o homenageia: “Não somos estrangeiros. Sempre estivemos aqui, há séculos. (...) A história está aí para provar, assim como a arqueologia. Nossos monastérios e outros artefatos arqueológicos mostram isso. E não é só no norte do país. Por todo o Iraque. Mesmo em Najaf existem monastérios e ruínas de igrejas, do mesmo modo que Karbala e Nassariya. Não temos ambição de governar nada. (...) Só queremos viver em paz”.
Os cristãos do mundo inteiro deveriam ouvir a voz de Maha, que fala em nome da Igreja dos Caldeus, a qual fala, com Roma, em nome do Cristo, cuja Mãe segue padecendo em Bagdá diante da visão de seus filhos crucificados.
Texto veiculado originalmente em 18/07/25 pela newsletter do Seminário de Filosofia.